quantas novas histórias todos
os dias cruzam o mundo.
quantas nascem junto à porta...
mesmo a meio da viagem
há lugar para uma casa!
Arte de Fernando Silva
talvez gostasse de ter sido carpinteirode outros artefactos mesas cadeirasarcas de guardar outros valores.sonhei esse gosto antigo de recortare desenhar figuras e mãos... (elas outra vez)que me acariciassem que eu fariapolidas e coloridas tal como as palavrasque recortava cortava em duase colava juntava e davasentidos novos sentidos possíveiscom a mesma destrezacom que meu pai usava a plainaou a lixa para as tornar mais belastábuas mesas mãos palavrasgostaria de ter o dom dos artesõescarpinteiro costureiro pintorde madeira panos papéisque por enquanto são feitosquase somente de palavrasas que tu me dásas que eu embalo acaricio costuro euma vez mais lisas e brilhantesverto e devolvo.quisera ser madeiratinta risco pano e somIn: "quando menino eu lia...", João S Martins, inédito
agora escrevo e leio escrevo escrevoe se antes lia para devorar as ideiasou escrevia para matar as saudades oumais tarde publicar se alguém lessehoje é o prazer de brincar com as palavrasesses brinquedos tão sérios dos temposem que eu menino lia tais palavrase tal como outrora quisera ser pintor maioragora fazia desenhava palavras e imagensou músicas de sabor e forma diferentea coleccionar o mais o muito o antigo.regresso à escola da criaçãoa esculpir formas e figuras e mãose nelas ver a alma de quem as informa.corto colecciono e afago ferramentasletras madeira parágrafos e sonhoscomo filhos que também o são.e há escritas e leituras noite fora oua meio de um sono que desperta incomodae agita as perguntas na caixaonde o pensamento as guarda e fazcolheita das promessas uma a uma:regressarei em círculos de palavrapoesia música pintura fotografiaque não desdenho nem deserdo
antes anseio e sonho.
quando menino falava e eram jáalgumas as palavras as falas que sabiaainda antes de saber falar antes ainda
das sílabas usava palavras de andar
palavras agarradas às saias da mãe
às cadeiras às pernas das mesasao colo dos tios palavras que dizia
mesmo sem falar. davam-me palavras
que guardava nos bolsos de falar
davam-me doces que eu comiapalavras rebuçados que saboreava
ou guardava e poupava
para saborear e usar mais tarde.
se tinha demais também oferecia
e trocava para aumentar o meu tesouro
de chocolates palavras doces.e a minha colecção de iguariascresceu e fui juntando e juntando
muitas palavras guardadas
saíam dos bolsos como brinquedos
para os meus jogos de menino
com os amigos e vizinhos da minha rua
onde havia muitas palavras soltas
que eram de todos. e como os cromos
dos jogadores de futebol e dos ciclistas
trocávamos para aumentar a nossa
caderneta colecção de cromos e palavras
e havia palavras para todos
palavras de todos para todos
palavras com um amanhã
menino menino lia...
e visitava o coração esse enorme
vão de escada biblioteca onde
cabiam todos os livros sem idade
ou com idade de meninos ou graúdos
todos os livros de amor
e outras escritas da alma
espalhando folhas soltas
pagelas de olhares de menino
o mesmo que em menino liapalavras. palavra de menino
chegará sem dúvida o momentoinevitável, em que eu ou tu estaremosna sala, sós, olhando literalmentepara a janela uma das muitas janelasde ontem, ou do amanhã entreaberto.e eu lerei para ti, ou alguém virá lerpara mim, a tua carta ou um qualquer jornal.a voz será mais importante e suaveque as notícias ou os resultadosdos políticos ou dos concursos desportivos.se for dia dos teus anos cantarei,ou se for o meu aniversário dirão:parabéns (pela longa vida?) por tudoquanto a idade permitiu fazerao longo dos dias de inverno mais curtos.(...) depois…vamos cortar só para nós dois o bolo esaborear. tu lês e eu escuto e, num sorriso,dirás para mim: parabéns e eu direimuitos anos de vida. adormeceremos entãoou vice-versa…