quinta-feira, 11 de agosto de 2011

conto - os olhos do meu Avô

 
OS OLHOS DO MEU AVÔ



“A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira.
A velhice sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho.”

                          Millôr Fernandes
 


Apetece-me uma história. Uma história contada? Ouvir uma história? Ou escrever?!...

Vamos começar pelo princípio. Como muita gente hoje em dia, tenho um computador. Então... ligo o computador; espero que o ecrã se ilumine e mostre a imagem de fundo, uma fotografia antiga, a preto e branco (mais tarde contarei o que é); entramos no programa próprio para escrever parágrafos e descrever sentimentos; e mãos à obra: tecla após tecla, letra após letra, vou criando palavras que junto umas com as outras (disseram-me um dia que as palavras escolhem aquelas junto às quais querem ficar, porque gostam mais de estar junto de umas que de outras... como nós, com os nossos amigos); será que as palavras envelhecem assim juntinhas, como nós? Pois as mãos vão batendo nas teclas e as linhas vão avançando (momentos há em que as mãos quase me fogem do teclado, não porque estejam cansadas, mas em busca de qualquer coisa... que não sei bem o que será, mas que me intriga). Mas eu não deixo que elas fujam para muito longe das letras. Estas, as teclas e as palavras necessitam dos meus dedos! Para continuar a história...


“De mãos enrugadas, já trementes,
com as lunetas sobre o nariz,
a minha avozinha já sem dentes,
contava histórias que me faziam feliz:
Branca de Neve e os sete anões,
João Ratão, lendas feudais,
Alibabá e os seus ladrões e muitas mais.

Avozinha, vá lá, só mais uma,
conta, que eu não faço ó ó,
conta aquela da fada de espuma,
só mais uma, querida avó.
E se acaso eu me deixar dormir
amanhã o final quero ouvir
Avózinha vá lá, só mais uma,
conta alguma, querida avó!

E a melodia, na minha cabeça, parecia uma orquestra, não me largava...

Para junto de Deus foi a avozinha,
partiu um dia, deixou-me só
deu-me deus em troca uma filhinha
para que eu um dia possa ser também avó.

E com o seu grande porvir
a minha filha à sua filha irá dizer:
Avozinha, vá lá, só mais uma,
conta, que eu não faço ó ó,
conta aquela da fada de espuma,
só mais uma, querida avó

A cantiga de antigamente aparece no computador como que por magia! Tecnologia ou memória!? Perdi-me, ou foi a minha cabeça ou as minhas mãos que se perderam? Quero as minhas mãos de volta, necessito delas para a minha história.

            - Avô, como é que se envelhece?

encolheu os ombros, olhou-me com um sorriso quente... de tão velhinho já não se lembrava. Nesse sorriso parecia que tudo se juntava: esquecimento, carinho, olhar distante de quem tenta ver ao longe... tudo muito equilibrado nuns olhos pequeninos rodeados pelas rugas que a idade, o sol e o sal das lágrimas, e a vida lhe tinham posto na cara, com a moldura de  uns cabelos brancos prateados. Para mim, nesse retrato eu via um mapa e um dedo a indicar o caminho para o coração.

            Eram assim como alguns dos caminhos que eu seguia. Quando eu entrava na casa dos meus avós aos sábados de manhã para barbear o meu avô, era uma festa: na parede, uma fotografia do pai dele, o meu bisavô Pedro, que me seguia com o olhar para qualquer lado que fosse. Nem sempre entendia esse olhar misterioso que me seguia pela sala, mas o bigode imponente metia-me respeito ao mesmo tempo me enchia de orgulho, tal como o bigode do meu avô que, com o mesmo olhar cheio, se orgulhava de mim por razões bem simples mas igualmenmte importantes. Ainda eu não fazia o bigode e já tinha o previlégio de barbear o meu avô, quando eu estava de férias, ou sempre que o barbeiro habitual, o Carvalhinho, não podia fazê-lo.

- Avô, há muito tempo que usa bigode?

-  Isso é uma história muito longa...

- Avô, conte-me a história do seu bigode!

Nem sempre ele se lembrava... outras vezes lá dizia:

... desde que fui para a 1ª Guerra Mundial que uso bigode. Mas lá o inverno era tão rigoroso que o “bafo” quente que nos saía da boca quando falávamos ou respirávamos logo congelava no bigode e era um problema, pois quase nos fechava a boca...

- E nem o calor de um beijnho o derretia?  era a minha contribuição de rapazote.

- Malandreco... dizia ele, mas logo divagava e cantarolava:

“Lá pela guerra ‘fini’, soldado português parti...
‘Mademoiselle’ parti pró maná... lá... la... lá.. lá... lá
Papá ‘zigzag’, mamã flori...
‘Mademoiselle’ parti pró maná... lá... la... lá.. lá... lá”

e eu olhava para ele, ele via-me, mas já “cá” não estava. E eu lá continuava a barbeá-lo, à espera dos cinco tostões que ele me daria no final, a “paga” pelo meu gentil serviço. Sempre me intrigara a “distância “ a que ele estava quando olhava para mim muito sério e se desvia da realidade para bem longe.

Contava-me a minha avó uma história que para mim era um conto de fadas:

- Eu não conhecia o teu avô,  que, como tu sabes e ele te contou, andou em França na 1ª Grande Guerra. Depois da guerra terminar, em todas as terras que tiveram soldados a combater, houve um desfile de festa cheio de alegria pelo regresso dos soldados. Eu, com as minhas irmãs, fui ver esse desfile e, entre os vários soldados da nossa aldeia, vi um que desde logo me agradou, ele fixou o olhar e, como se diz, foi amor à primeira vista... Daí a três meses casámos e, como num conto de fadas, tivemos muitos filhos, fomos muito felizes por muitos e muitos anos...

Eles tinham já celebrado a festa de cinquente anos de casados (tantos?!...) e já nem eu me lembrava bem quando tinha sido.

- Avô, há quantos anos foi essa guerra?

olhando longe, enigmático, respondia

            - Há muitos, muitos anos... tantos que já quase esqueci.

Eram estes esquecimentos do meu avô que me deixavam a pensar. Sempre ouvira dizer que as pessoas de mais idade mais facilmente recordavam os acontecimentos mais antigos que os mais recentes. Com o meu avô não se passava o mesmo. Bem, quase não era bem o mesmo, pelo menos naqueles dias em que ele “estava longe”, muito calado, a olhar nem eu sabia bem para onde. Creio que nem ele saberia.  Estava perto de mim mas, ao mesmo tempo, distante.
Tentava trazê-lo de novo para perto de mim:

- Avô, lembra-se desta fotografia que você tirou com a farda de soldado? Foi nessa guerra?

Chegou a altura de vos dizer: é a mesma fotografia que eu agora tenho no ecrã do meu computador. O meu avô, na 1ª Grande Guerra!...

- Sim, foi a minha grande guerra, na batalha de La Lys, onde estive com muitos companheiros soldados e....

(parecia que saía da sala, embora continuasse ali bem perto de mim)

- Há alguma batalha que se lembre, onde você foi o herói?Vá lá, conte!... pedia eu.  (na minha cabeça de rapaz, eu tinha que ter um herói, e o meu avô era o meu herói, para dele poder falar e me orgulhar diante dos meus companheiros da escola). Como qualquer miúdo também eu dizia:

Quando for grande quero ser como o meu avô! Quando for velho quero ser como...
aqui já não tinha tanta convição nem tanta certeza. (afinal, o meu avô, já não se lembrava de tanta coisa... viria eu um dia a ser assim velho como o meu avô?).

O meu avô, ao ouvir-me tratá-lo por herói, até dava gosto vê-lo: respirava fundo, fazia uma cara muito séria, imagináriamente compunha o barrete da farda militar, ajeitava o casaco, alinhava os botões, levava a mão direita à cabeça, fazia a saudação militar e, pensava eu, naquele momento, na sua cabeça, ele escutava os clarins militares, imaginando-se a desfilar na praça principal com todos os heróis, a saborear os aplausos e as bandeirinhas nas mãos de todas as crianças da aldeia. O regresso dos Heróis! Do meu avô!
            Da moldura da fotografia era como se de repente saísse de um tempo presente e entrasse “noutro presente”, atravessando de sala para sala, ao longo de tantos anos de vida, e saindo porta fora...

Há uns dias pediram-me que não faltasse a uma reunião; o coordenador não estaria por ter de viajar (“por favor não faltes! pelo menos para impôr respeito...”). Senti-me velho, coisa que raramente me acontecia. Perguntei a mim mesmo se seria apenas para isso que serviam os velhos, sobretudo se tiverem rugas, barbas, e forem muito velhos: para impor respeito! Ora, o meu avô impunha respeito, sim, mas não era tão velho assim nem tinha barbas; apenas um bigode, o tal que era quase uma promessa, (a história que ele tantas vezes me contara e já todos sabiam), um hábito que lhe ficara desde que, na primeira guerra mundial, tivera que o cortar por razões de saúde?! Lá vem outra vez a história, pensei. Este esquecimento constante do meu avô...

            - Por razões de saúde, avô? espanto meu, tal como na primeira vez que lhe escutara esta história...

- História, não, que é uma verdade! O frio era tanto que o bafo da respiração congelava nos pelos do bigode e, ao “congelar” o bigode, congelava-nos a boca... E foi por isso, como agora entendes, meu neto, que contra a minha vontade, contra a promessa, tive que fazer o que não esperava: cortar o bigode...

            As coisas que a gente faz por razões de sobrevivência, esquecer uma quase promessa, quase contra a nossa vontade (não recordo se este comentário foi meu ou do meu avô, ou de nós dois, em simultâneo). Mas continuava a fazer a barba, ou antes, agora éramos nós quem lha fazíamos, porque ele sempre fora e continuaria a ser um homem de barba na cara, um homem de palavra, mesmo sem saber escrever uma letra.
Sim. O meu avô não sabia escrever, “a vida não lho permitira”, desculpava-se ele. Estava um pouco esquecido, agora que estava mais velho, mas quando ele já era velho, mas não tanto, lembrava-se das coisas mais antigas da vida dele, como as da guerra, e da vida da minha aldeia. Mais novo sou eu e, às vezes, até já escrevo para não me esquecer.
           
                        Mas nunca ele me falou em ter medo de morrer, nem quando me contava as história tenebrosas do tempo da guerra:

- Um Homem nunca tem medo. Por aquilo em que acredita até oferece o peito às balas e, se tiver que morrer, morre como um Homem com letra grande, e em pé!
Oferecer o peito... estranha oferta, mas se o meu avô, o meu herói me dizia, devia ser verdade! Só que eu ainda não entendia isso muito bem, nem outras coisas que o meu avô, no seu papel de professor, me ensinava.

- Um dia, quando fores grande, entenderás!

Entendi? Sim, e nessas e noutras lições o meu avô continua vivo. Por vezes conversava com ele sobre muitas coisas, até sobre aquelas que ele, antes de ele começar a contar, me prevenia: sobre isso não falas a ninguém, nem à tua avó. São coisas de Homens!... (olha o sorriso malandro e gozão do meu avô!...). E eu respeitava. Um pedido destes era uma ordem do “meu general”.

Muito ele gostava dos dias de festa, mas muito em particular das tardes de domingo em que jogava o seu clube do coração!...

- Mas o que é um clube do coração?

será por ser vermelho, como o sangue?

- Não, porque está sempre no nosso peito, como alguém de quem gostamos muito, muito, e sempre, sempre, mesmo que ganhe, mesmo que perca...  
- Ah?
- ... sim; e se ganha festejamos; quando perde choramos para, com as lágrimas, afogar a dor... mas continuamos a gostar dele...  Mas que lição!...

Sim! De festas e de festejar, ele gostava: na famosa festa dos cinquenta anos de casados, ele mais a “santa da tua avó”, como carinhosamente se referia à companheira de tantos anos, alegrias e tristezas, juntaram os sete filhos vivos, genros, netos e bisnetos e, no auge do convívio familiar, depois de regar a celebração, começou a desfiar tantas dessas histórias que eu já conhecia das minhas tardes de sábado, de barbeiro particular oficial, quando me deixava seduzir tanto pelas histórias como pelos olhos do meu bisavô naquele retrato solene.
E lá voltava a cantar:   ‘La pela gerra “fini”...’

A minha prima e sua neta que viera do Brasil para se juntar à festa trouxera um gravador de fita e, (diz-se), gravou as cantigas e histórias do nosso avô misturadas com as gargalhadas de todos nós, do mais pequeno ao maior...  “diz-se que gravou”, acrescento eu, porque, que eu me lembre, nunca alguém terá ouvido tal gravação que, a existir, seria uma coisa deliciosa!... Mas, provavelmente, terá feito companhia desde muito cedo à memória (e esquecimento) do meu avô. Que mais poderia ter sido?

- Minha avó, como é que o avô envelheceu? Que idade ele tem?

Ela, num olhar complascente, encolhia os ombros e sorria... Ter-se-ia ela esquecido também? Concluí que deveria ter a mesma idade do meu avô; afinal, ao fim de tantos anos de tudo em comum, até a velhice eles partilhavam; que diferença faria mais mês menos mês? Tinham vivido e envelhecido juntos.

Como é que se envelhece como o meu Avô? Terão os médicos a resposta para essas constantes viagens e ausências? Fala-se de tantas doenças que quase esquecemos a palavra velhice. Bem: cá no fundo, quando for grande, quando for velho, quero é mesmo ser como ele. Até me dizem que sou parecido com ele, metade gozão e a outra metade de coração brando, grande e meigo. E o mesmo no olhar...

 
Os meus dedos, as minhas mãos, abrandam ao ritmo de tantas histórias e olho também para longe, quase olhos nos olhos, muito fixos nos olhos do meu Avô. Ou não tivesse eu a sua fotografia no ecrã do meu computador. A fotografia do meu avô Manuel Fidalgo, (que nome!...) todo aprumado na farda da tropa da 1ª Grande Guerra. Sim, a mesma fotografia que orgulhosamente mostro aos meus filhos e netos. A caderneta militar, essa guardo-a num cofre, tesouro recheado de memórias e de olhares. Se ele sobreviveu naquela guerra... porque não prolongar-lhe a memória? Talvez um dia o meu neto me pergunte:

- Avô, como é que se envelhece?

... ...

... e eu, sorrindo, encolherei os ombros ao tempo!...


“E se acaso eu me deixar dormir,
amanhã o final quero ouvir...”

4 comentários:

  1. Oi João, veja só que alegria,enquanto meu neto assistia a um filme,resolvi mostrar ao pai da minha filha teus trabalhos de madeira,visto que ele tambem gosta,ao passar encontrei esta linda homenagem ao nosso avô,faltou a música:era o vinho meu Deus era o vinho,era a coisa que mais me agradava,só por morte meu Deus só por morte,só por morte é que o vinho deixava....lembras-te

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  2. Como eu adoro essa musica (Avozinha)! Gostava tanto de a encontrar na versão cantada...!

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  3. https://www.youtube.com/watch?v=6c9vCEQjwDA
    :)

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